Em um conto brevíssimo mas inspirado, Borges lembra do mapa de um império que alcançava o exato tamanho do império, coincidindo ponto por ponto com ele, mapa e império, império e mapa, em uma inesperada escala de 1 para 1. Esse delírio cartográfico, passadas algumas gerações, revelava-se inútil e terminava abandonado nos desertos, entregue às inclemências do Sol e dos invernos.
O relato, de alguma forma, dá conta do fracasso não apenas desse mapa desabusado e imenso, mas, de modo geral, de qualquer sistema de representação: quase sempre aquém, desgraçadamente fadado à imperfeição, no mais das vezes inútil. Eis aí, suponho, um dos vetores conceituais deste Ensaio de uma ordem das coisas, de Marina Camargo.
Marina sabe da imprecisão e das falhas das nossas representações – sejam elas artísticas ou científicas, geográficas ou históricas, ancoradas em textos ou imagens, ou mesmo em ambos. Tente você mesmo: pegue dois mapas iguais, que correspondam precisamente às mesmas fronteiras e que sigam exatamente a mesma escala. Agora sobreponha um ao outro. Nunca hão de coincidir. Pergunte-se ainda: como transpor, de modo fiel e reconciliável, o relevo da Terra à circularidade do globo? A curvatura do globo à planaridade do mapa? Ocorre que a artista, antes de lamentar esses infortúnios, trata de saboreá-los. Tanto o rigor quanto o insucesso das representações são aceitos e bem-vindos.
Acontece ainda que, nesta nova série, essa primeira percepção se combina ao gosto pelos mapas como objetos, como disposições coordenadas ou itens de coleção, papeladas que se dobram e se desdobram, com seus códigos próprios, suas grades particulares, sua linguagem consensual. Tudo disponível como matéria para o desenho. Basta reordenar.
Os mapas, por fim, despontam como depoimentos gráficos – de incontornável pendor político – sobre territórios já definidos e já percorridos, ou a serem conquistados e reconhecidos, desejados. Marina recorta os mapas, remonta as geografias, aponta para os vazios que, mesmo sem querer, podem revelar uma presença. Os mapas, como queria Borges, subsistem como ruínas.
Texto escrito em ocasião da exposição individual “Ensaio sobre uma ordem das coisas”, de Marina Camargo, no Goethe-Institut Porto Alegre, 2015.