Antombra

Vivemos em constante rotação, atraídos pela força proporcional à massa e ao tamanho desta esfera que chamamos Terra. Não se trata exatamente de uma esfera, pois suas calotas são achatadas, mas a chamamos assim por aproximação geométrica e conveniência de representação.

É na aparentemente inofensiva combinação de aproximação geométrica e conveniência de representação do mundo que Marina Camargo funda sua prática artística. Grande parte de suas obras recentes mergulham na margem de erro das convenções cartográficas que registram, perpetuam e expandem concepções hegemônicas do território. Muitas vezes esquecemos que todo mapa resulta de uma operação de projeção e opera como uma ferramenta de controle (cognitivo, simbólico, técnico ou, efetivamente, bélico). Marina nos ajuda a retomar o estranhamento e a dúvida, levando os mapas a encontrarem-se com outra forma de projeção: a sombra.

Resultante do bloqueio de raios de luz por corpos opacos, a sombra é um indício de tamanho e forma das coisas e das superfícies, podendo tanto revelar dimensões difíceis de mensurar, quanto conduzir a ambiguidades e equívocos. Um eclipse, por exemplo, comprova posições, distâncias e tamanhos de corpos celestes, mas também oculta a fonte da luz. É instintivo querer evitar a sombra, retardar o eclipse, perder as descobertas dele decorrentes e sonhar com a correção absoluta (e inatingível) de mapas sem distorções e arbitrariedades. O que Marina faz é resistir a esse instinto, dando um passo atrás na sombra, alcançando a antombra, de onde há distância suficiente para enxergar o halo de luz por trás do corpo opaco que provoca o eclipse. Ficar com o mapa, torná-lo sombra, deixar que amoleça, manche, dissolva, cante.

O que hora vemos na exposição A Certa Sombra é um novo passo na jornada de Marina Camargo, que começa a apalpar os cacos dessa cartografia-sombra amolecida e dobrá-la como um origami, uma fábula, um bicho.

Oco

Quem percorre as áreas de convivência e circulação do Instituto Ling encontra uma obra emoldurada posicionada antes mesmo do título e do texto curatorial da mostra que se inicia na parede de acesso à sala expositiva. Trata-se de Esboço geográfico: Sertão (2023), típico mapa escolar do Brasil que a artista transforma com três intervenções. O mapa foi subtraído de uma área recortada na forma aproximada da área conhecida como sertão, região fundamental para a história do território brasileiro, cujos contornos geográficos são difíceis de precisar. Atrás da moldura, essa mesma forma foi pintada em cinza pela artista à maneira de uma sombra projetada pelo vazio do mapa. E no canto inferior do quadro, onde usualmente estaria uma legenda de leitura dos códigos cartográficos ali empregados, ela inseriu uma outra espécie de informação, uma coleção de definições do sertão encontradas em dicionários:

O interior, o coração das terras, opõe-se ao marítimo, à costa. Desertão. Deserto grande. Sertão.

Assim, o acúmulo de interferências explicita a tentativa obstinada de cartografar algo que, entretanto, nunca para de escapar. O sertão pode ser o vasto vazio (desertão), mas também pode ser o que dá pulso ao chão (coração das terras). O sertão brasileiro é tanto um fato quanto uma invenção. Seu mapa, portanto, aponta um território geopolítico, uma terra, uma alegoria, uma sombra. Uma paisagem, um território poético, um vazio.

Depois de encarar o vazio/cheio transbordante do sertão imaginário, o visitante encontra dois vídeos que lidam com a opacidade do território. Farol (2023) evoca memórias de infância da orla de Maceió com uma sequência de imagens fotográficas erodidas por recortes digitais, enquanto um texto remete, de modo indireto, aos resultados da exploração indiscriminada de sal no subsolo da cidade, a qual levou quarteirões e bairros inteiros ao colapso estrutural e ao abandono – efeitos visíveis de movimentos subterrâneos. Já Detecção de latitudes e longitudes (2021) se faz com o girar de um globo terrestre pelas mãos da artista, ao som quase sussurrante da leitura de números e palavras encontradas na superfície cartográfica – improvável variação de um exercício de ASRM (autonomous sensory meridian response) que devolve carga sensorial ao procedimento abstrato de reduzir a representação do planeta a uma bola que pode ser carregada entre as mãos.

Mapa como desenho como mapa

Certa feita, o pioneiro pensador da cultura brasileira Mário de Andrade ponderou: “O que me agrada principalmente, na tão complexa natureza do desenho, é o seu caráter infinitamente subtil, de ser ao mesmo tempo uma transitoriedade e uma sabedoria. O desenho fala, chega mesmo a ser muito mais uma espécie de escritura, uma caligrafia, que uma arte plástica. (…) É uma arte intermediária entre as artes do espaço e as artes do tempo, sendo materialmente uma arte em movimento, o desenho é a arte intermediária que se realiza por meio do espaço, pois a sua matéria é imóvel[1].

Seria difícil encontrar melhores palavras para sustentar a relação entre o interesse de Marina Camargo pelo desenho com sua abordagem das palavras e das práticas cartográficas. Pode-se argumentar que grande parte da obra dessa artista consiste em tornar tangível (e manipulável) o fato de que toda cartografia é uma espécie de desenho e, portanto, não deixa de ser uma sutil escritura transitória entre tempo e espaço. É em torno dessa constatação de que um mapa, apesar de suas densas implicações como dispositivo de conhecimento, controle e exploração territorial, é também uma forma poética, que se organiza o próximo estágio da mostra A Certa Sombra.

O painel pintado Geografias Desdobradas – Panorama (2023) foi instalado ao fundo do caminho que dá acesso à sala expositiva. Com suas amplas dimensões (210 x 368 cm), ele se apresenta à maneira dos numerosos e imponentes mapas que projetam autoridade a uma genealogia de espaços de poder que vai de salões da realeza de impérios coloniais a halls de redes hoteleiras multinacionais, passando por salas de reuniões da Organização das Nações Unidas. Vista de perto, entretanto, a imagem do mundo apresentada pela obra se revela menos estável e consensual do que se imaginaria. A posição e a forma dos continentes são suficientemente familiares para que se reconheça um tabuleiro global, mas cada peça desse nesse arranjo aparece multiplicada, dobrada, rotacionada, invertida. Há um jogo de avessos e direitos que a artista produziu com técnicas típicas de composição gráfica, trabalhando com moldes móveis a fim de estabelecer contornos livremente preenchidos pela tinta preta, contando com a cor do suporte (a madeira) como parte da imagem.

A complexidade infinitamente sutil desse desenho cartográfico logo se espraia para as obras que lhe fazem companhia ao adentrar a sala expositiva. Três dos desenhos chamados Distúrbios (2020-2022) trazem a silhueta da América do Sul repetida inúmeras vezes, seu contorno delineado por linhas de tinta nanquim aplicada com bico de pena. Um quarto desenho emprega o mesmo processo no contorno do continente africano. Em todos os casos, as linhas desenhadas ondulam, sua espessura varia com as alternâncias de pressão e da direção do bico de pena, multiplicando-se desalinhadas – essas linhas delimitam áreas pintadas de cinza enquanto sugerem movimento e vibração, como se numa hipótese de cartografia sismográfica em que os distúrbios estão aquém ou além dos abalos geológicos.

O Mapa-mole: Espectro (2022), por sua vez, leva ao limite o princípio da projeção como etapa necessária para a produção de representações bidimensionais de uma superfície esférica. A peça se faz por cortes em um plano de borracha, do qual se removem pedaços. Esse plano subtraído de matéria é, então, suspenso junto à parede por seus vértices superiores, e o peso da borracha atua na deformação de suas partes. Como se por um feitiço, as reentrâncias nos cortes projetam sombras desse corpo sobre a parede, e nessa sombra é possível reconhecer, outra vez, a silhueta fantasmagórica da América do Sul.

Em seguida, apresenta-se outro grupo de obras recentes de Marina Camargo. África Rosa, América Expandida, América Sombra-Luz I e América Sombra-Luz II (todas de 2023) são pinturas de pequenas dimensões que enquadram a silhueta de continentes específicos e os desdobram em rebatimentos análogos aos já descritos em Geografias Desdobradas. A composição majoritariamente centralizada dessas telas soma-se com a aplicação algo diluída de tintas com cores raramente empregadas em convenções cartográficas (como o preto, o roxo e o lilás) para produzir evocações afetivas, quase emocionais. Essas pinturas são, tanto quanto possível, retratos psicológicos dos territórios[2].

Um mundo em sobrecarga

O fundo da sala expositiva traz obras que alargam os limites da reinvenção do fazer cartográfico pelo desenho. Primeiro, há um grupo de obras de pequenas dimensões das séries Fluxos: Atlas Antiquus e Fluxos: Taschen-Atlas (ambas de 2023), as quais foram produzidas a partir de mapas pré-existentes, originalmente publicados em atlas antigos, com a representação não apenas dos continentes, mas dos oceanos. Sobre esses mapas, a artista desenhou com nanquim múltiplo arcos de parábola, vetores similares aos que usualmente indicam rotas marítimas, porém agigantados em sua espessura e densidade. Especialmente sobre o Atlântico, que foi por séculos travessia e vala comum para milhões de pessoas escravizadas fundamentais para a máquina colonial, essas linhas opacas acumulam-se até tornarem o mapa quase indecifrável, subvertendo a hierarquia convencional entre corpos terrestres e fluxos dinâmicos nas representações cartográficas.

Depois, encontra-se a instalação de borracha de grandes dimensões chamada Re-pangeia (2019-2023), na qual os continentes, que um dia formaram um só corpo terrestre, reconectam-se solidarizados por aros metálicos, formando uma massa que pende de uma barra elevada e se espalha pelo chão. Nesse trabalho, a qualidade tátil (háptica) da borracha preta, além de remeter às icônicas obras moles de Lygia Clark, evoca o fetichismo dos bodysuits emborrachados que simultaneamente abrigam e mascaram, vestem e revelam corpos ambivalentes.

Em ambos os casos, a superfície do mundo encontra-se sobrecarregada de si mesma. Sua codificação enquanto cartografia não a protege de alguma carnalidade e de uma velatura que pode ser tanto signo do desejo quanto sinal de apagamento. Talvez por isso não cause estranhamento o encontro subsequente com Continentes dobrados (América do Sul) (2019), em que a superfície reflexiva e áurea do latão incorpora um continente cuja parte superior flexiona-se sobre si mesma, como se cedesse ao próprio peso, chegasse a um estágio inicial de derretimento ou se curvasse em saudação ou convite.

Linhas de canção

Songlines (2019-2021) é uma performance musical de Marcelo Cabral em parceria com Marina Camargo. Sua criação começou em 2019, quando a artista compilou cinco livros com os desenhos das fronteiras terrestres de todos os continentes e convidou o músico a interpretar livremente a sequência de linhas fronteiriças com o baixo acústico, fazendo dos limites geopolíticos uma sorte de partitura sonora experimental.

Os cinco livretos de fronteiras são apresentados abertos em estantes de partitura, encerrando a mostra junto a um monitor em que se apresenta a gravação da performance realizada pela primeira vez ao vivo na abertura de A Certa Sombra. Na flutuação entre linguagens – da linha impressa ao som reverberante, da publicação ao vídeo – evidencia-se a amplitude dos processos empregados por Marina Camargo.

Toda sorte de fronteira é um campo (assimétrico) de adensamento de diferenças, tensões e choques geopolíticos. Se esse tensionamento já é perceptível nos limites oceânicos dos territórios, faz-se ainda mais tangível em fronteiras terrestres materializadas por muros, portões, barreiras alfandegárias e controles migratórios. E é justamente a coletânea dessas linhas que a artista submete a operações de isolamento e ordenação, processo típico do método científico analítico, gerando – de forma contraintuitiva – um corpo que se disponibiliza ao musicista e compositor como matéria aberta à interpretação. Na versão ao vivo da performance, se faz triplo o sentido de “interpretação”: leitura das linhas, tradução do visual ao sonoro, execução da composição em tempo real. Nessa tríplice interpretação, linhas abstratas com efeitos concretos sobre os territórios retornam à abstração, liberadas e disponíveis à invenção sensorialmente compartilhável.

Trata-se do desenho, como disse Mário de Andrade: uma arte intermediária entre as artes do espaço e as artes do tempo.

Paulo Miyada


[1] Mário de Andrade. “Do desenho”, In: “Aspectos das Artes Plásticas no Brasil”. 2ª. Ed, São Paulo: Martins, 1975. p. 69

[2] Essa leitura me foi inicialmente sugerida por Nik Neves, companheiro da artista e seu colaborador (formal ou informal) em diversas obras. Depois, lembrei também dos chamados retratos psicológicos de Flávio de Carvalho.


Paulo Miyada é curador e pesquisador de arte contemporânea. Possui mestrado em História da Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP, onde também foi graduado. É curador chefe do Instituto Tomie Ohtake desde 2015 e curador adjunto do Centre Pompidou desde 2021. Foi curador adjunto da 34a Bienal de São Paulo (2019-2021) e do 34º Panorama da Arte Brasileira do MAM-SP (2015). Entre suas curadorias, destacam-se AI-5 50 Anos – Ainda não terminou de acabar (2018) e Anna Maria Maiolino – PSSSIIIUUU… (2022).