A exposição Onde a Terra Dobra de Marina Camargo apresenta um conjunto de trabalhos cujo elemento comum reside na relação poético-imaginária que estabelecem com a ciência cartográfica, a partir de intervenções e recombinações que desdobram os múltiplos sentidos latentes no exercício de confecção dos mapas. Como um saber que remete à pré-história, a cartografia em seu âmago caracteriza-se por um processo de tradução de uma realidade tridimensional e esférica para o plano bidimensional da representação. Por isso, mesmo que ao longo da história e do desenvolvimento da técnica tal saber se insira no campo do conhecimento científico, as escolhas que são necessariamente realizadas para a efetivação desse processo de tradução/interpretação abstrata do espaço físico criam lacunas que implodem, de saída, seu caráter objetivo. Por mais que os novos softwares permitam um grau de exatidão maior no mapeamento da superfície, a terra segue seu ritmo geológico constante de mutação, deslocando lentamente suas linhas e fronteiras. Logo, não é exagero supor que a vontade de dominação da natureza, alicerce do pensamento moderno, possua um lado ilusório e ficcional.

Camargo explora em seus trabalhos o elemento lúdico originado nas frestas entre o desenho dos mapas (ou qualquer forma de linguagem representacional) e sua interpretação, a partir da experiência de deslocamento que também é pessoal e corpórea. Como alguém que vive entre duas culturas, no Brasil e na Alemanha, a artista percebe as distorções contidas nessas representações que, no fim, possuem uma estrutura narrativa subjacente a seu pretenso valor utilitário. Pois cada escolha, cada traço, cada forma, engendra um olhar particular para a história que, de resto, não é universal, como mostra o conjunto Notas sobre a História Universal (2018). Neste trabalho, a artista se apropria de imagens fotográficas de um atlas antigo e as encobre com tinta spray preta, deixando uma pequena “janela” em cada foto, como um fragmento que potencializa o sentido de recorte que preside toda visão.

Mover fronteiras, imaginar novos espaços físicos e mentais, dobrar o rígido, reconstituir o corpo físico e mutante pela distorção da forma abstrata e fechada, é o jogo que constitui as esculturas da série Mapas-moles (2019-2023). Nesses trabalhos, a artista parte do desenho exato dos continentes que ao serem transpostos para a borracha perdem a fixidez dos mapas, ou melhor, criam outras formas. A aparência orgânica dessas esculturas e seu material remetem o espectador às Obras moles, de Lygia Clark. Também para Marina Camargo, a reconstituição da dimensão tátil da experiência espacial é um ponto central para compreensão de sua poética. Nós “conhecemos” o mundo por meio da fricção corporal, do toque, do olho e dos sentidos encarnados. Essa compreensão não pode ser contida numa pura abstração distanciada, como pontua o vídeo Detecção de latitudes e longitudes (2021). Neste sentido, a arte, enquanto veículo dessa experiência pela linguagem (ou linguagens), é capaz de transformar a incerteza e a mudança em material para novas organizações imaginárias, como no conjunto de desenhos sobre folha de madeira Geografias desdobradas (2020-2023).

Em Songlines (2019-2021), a artista transforma fragmentos de desenhos de fronteiras políticas entre países em notas para uma partitura que pode ser livremente interpretada por diferentes compositores. Esse gesto, mínimo e delicado, faz lembrar que afinal toda grande tradução acarreta um acréscimo de sentido àquilo que traduz, como uma abertura utópica ao infinito. Depois de vivermos a situação inédita de um isolamento forçado, cujo efeito ainda não conseguimos mensurar, o trabalho de Marina Camargo vislumbra na recriação de relações menos engessadas para além das fronteiras estabelecidas, um caminho a seguir na era pós-pandemia.

Songlines (2019-2021) e Mapas Moles ao fundo.

Fotos: Estúdio em Obra