Um ateliê em Porto Alegre no bairro de Rio Branco (homenagem ao diplomata das fronteiras do Brasil) tem afinidade com as Bodas Arnolfini de Jan van Eyck. Lá se pensa uma cartografia radical adequada à geografia da violência contemporânea. No fundo da sala, esferas espelhadas aguardam uma rota – “ainda não sei o que vou fazer com elas”, sinaliza a artista. Enquanto isso, elas capturam o ambiente como o mistério pontual do espelho convexo (miroir de sorcière, i. e. espelho de bruxa) dos Arnolfini. As esferas na rua Cabral (homenagem ao achador do Brasil), são globos do aqui, engolfam o ambiente. São esferas especulativas (não mais especulares), a metáfora do olho geográfico de Marina Camargo. Sua cartografia é a melhor bruxaria da geo-razão tal qual a geometria é witchcraft na poesia de Emily Dickinson.

Um dia em dez segundos (sobre a relatividade do tempo), 2015

O opus é de Camargo é roteiro para erráticos em tempos da web, como Paris era para o flâneur de Baudelaire e o mouse é uma nave para o bisbilhotador do Google Earth. A hipótese analítica que ora configurada é o escrutínio do olho geográfico sob o modelo da bússola revirada. Se a cartografia é representação codificada, o objetivo aqui é desassossegar mapas em sua condição de problemas controlados [1].

“Penso os mapas como uma linguagem (ou seria uma ferramenta?) um meio de pensamento,” diz a artista. Se for linguagem é afonética; se for ferramenta é semi inútil; se for meio de pensamento, é potente. Diante das aflições geográficas, haveria um inconsciente cartográfico espacializado e mapas tormentosos e pesadelos espaciais por rotas que nunca levarão a um final, como Sísifo e o pequeno Aylan? O pior tormento é quando Camargo nos situa em anomia, sem Google, portulanos e estrelas, sem Verbo [2], sem Número [3], só o zero [4].

Gravidade na linha do equador, 2015

 

A cartografia de Marina Camargo distingue três conceitos: espaço, lugar e nonsite, em estado contaminações entre espaço e pensamento, segundo a ordem dos desvios topológicos: topofilia [5], topofagia [6] e topoemia [7]. O indizível espacial cartográfico de Marina Camargo situa o mundo entre Wittgenstein e Robert Smithson, o instituidor do inquitante nonsite (e. g., Mono Lake Nonsite, o mapa emoldura o nada) e o Mapa dobrado (1967) [8]. No viés da cartografia unheimliche, Já como índice de seus desvios experimentais, Camargo se interessa pelos mapas situacionistas, simples, mas carregados de conceitos, como “deriva contínua” [9].

O lado tectônico Gravidade na Linha do Equador instala as partes como fragmentos de uma convulsão sísmica ou de outro fenômeno geológico. Um colapso absoluto. O mais minimalista dos mapas aparenta ser uma Terra sem luz num momento anterior ao Fiat lux!. Jazem como os espelhos de Magritte (La Clef de champs). A geografia é atravessado por um golpe cortante à altura da linha do Equador. No entanto, a intensa luminosidade que ali incide vem do sol de Malevitch. O monocromo-mapa de Camargo confere ao preto a mesma força de presença do sol suprematista, um quadrado preto, sem luz e sombras dos relevos do mundo.

Que mapa é este? 14 perguntas.

Como se faz um deserto, 2013

Afasia. Mapas têm um destino fonético, ou será um mapa para geógrafos afásicos, afônicos, mudos, lacônicos, catatônicos, mussitantes [10].

Alice Lispector. “Fiquei de repente tão aflita que sou capaz de dizer agora fim e acabar o que te escrevo, é mais na base de palavras cegas” (Clarice Lispector, Água viva). Uma biblioteca sem palavras reuniria o espanto de Alice: Qual o sentido de um livro sem imagens ou diálogos? [11], as reticências de Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, o Livro da Criação de Lygia Pape, Água viva e Gravidade na Linha do Equador.

Bolívia. Na crise do poder, o planisfério de Camargo ironiza a Coroa britânica [12].

Cartas onfálicas. Como resistir à tendência das culturas de se verem no centro do universo? [13]

Cone austral. The South American way, o filme de Carmen Miranda, oferece uma a chave de uma geodésia perversa no contexto da diplomacia americana com relação ao Estado Novo na Segunda Guerra [14].

Contra-Sul. Na contra-margem, o Dymaxion de Buckminster Fuller se desnorteia, a projeção da Terra sobre um poliedro, que se separa numa malha de formas e toma a condição planar de mapa bidimensional [15].

Convulsões linguísticas. Mapas na arte operam deslocamentos metonímicos, condensação da sinédoque, enfim, devastação do campo semântico. O sistema léxico é aberto, mas o horizonte opaco. O que é isso que não nomeia e não sabemos nomear? É a negatividade do Map not to indicate do Art & Language [16].

Eloquência. Silenciosa, Gravidade na Linha do Equador é veemente no eixo treva e perplexidade – preto alude à ausência de diálogo Norte / Sul [17].

Alto-mar (Atlântico), 2018

Escotomia surda. Mapas mudos cegam [18].

Fronteiras sígnicas. Podem aqui ser distinguidos o Sertão, o Saara, o Pacífico, a Antártida e a Amazônia, os relevos de How It Is de Miroslaw Balka [19]. A perversidade cartográfica tudo obscurece. Como a nona praga do Egito, o mundoestá sob trevas – o tríduo caliginoso do Êxodo simboliza a submissão do Faraó, o poder imperial do Egito, a Yahweh [20].

Roteiro à espera. Há mapas melancólicos, cenas para uma solitária geografia beckettiana, iluminada pelo Sol negro de Narval [21].

Lugar: Tacuarembó, 2011

Trânsitos globais. O todo fraturado em infra-partes da Pangea, da Gonduana, da Orbe, de Oikos, de Babel, do império do Rei Sol, de mísseis, web, meteorologia, exílios, diásporas, fundamentalismos religiosos, capital volátil, contrabando, tráfico de droga, terrorismo, epidemias, está em Gravidade na Linha do Equador.

Vácuos cruéis. O mapa não é hipostasia de espaço, mas modo de conhecimento. Sua substância é vácuos [22], vazios, a dicotomia lacunar/ilacunar (os mapas lacunares têm o deliberado trabalho sobre a negatividade” [23]) / (toda antecipação construtiva, como os Bichos de Clark, é ilacunar [24]), buracos, cortes, decepamentos, dobras, rasgos, a toca no País das Maravilhas, anexações, subtrações, ocultações, mentiras, desertificações, tratados diplomáticos [25], olvido [26], a Carta a Mondrian de Clark (Através deste ‘vazio pleno’ me veio a consciência da realidade metafísica, o problema existencial), a poesia de Paul Éluard (Ta chevelure d’oranges dans le vide du monde), Nel vuoto del mondo (desenho de Schendel), o vaso [27] e a morte [28] impressionam a plasticidade cartográfica de Marina Camargo [29].

Marina Camargo desfaz a dúvida de Bachelard sobre a existência de um geógrafo sonhador, que se ofereceria como Atlas para sustentar o monte [30], mas seus mapas em vez de evanescerem condensam espessura dos significados. A arte, no mundo sem fácies, é o esforço de transformar a humanidade invisível do homo sacer em lugar de todos.


NOTAS

[1] Evita-se o foco nas bem assentadas posições cartográficas de Camargo, como em Topofilia ou contaminações entre espaço e pensamento.

[2] Camargo lê Karl Schlögel (In Space We Read Time) que aborda espaços e lugares como fatores históricos tão relevantes quanto as questões temporais da narrativa. Em Como se faz um deserto e Tratado de limites (inclui o toponímico Lugar: Tacuarembó), ela nomeia lugares concretos: o sertão e os pampas. O quiasma agora está na fricção entre lugar preciso e toponímia. Lothar Baumgarten pensa a redução toponímica colonial dos invasores frente os povos autóctones em torno da língua (América e Amazônia).

[3] Camargo desmonta a malha de perpendiculares e paralelas de Mercator ao projetar a Terra. Seu fascínio surge por ele “ter aberto leituras distorcidas do mundo e facilitado as navegações. Sua cartografia é uma referência por oposição a uma verdade estabelecida contra a qual devemos nos posicionar.” Alto-mar reage a Mercator, confrontando a noção de malha da arte moderna.

[4] O Sertão sem valor econômico.

[5] Os espaços de Camargo, interpretados do ponto de vista afetivo, não por determinismo ou historicismo, se sustentam em densa teorização do cartografável e sua conversão poética para defender a mudança de percepção através dos lugares.

[6] Com voracidade, tudo fagocita.

[7] O sufixo emia tem origem no grego emein, vomitar. O mapa de Camargo não institui o lugar da cena (como em Geiger e Varejão), pois lhe interessa a devoração do próprio mapa, sua deglutição e vômito convertidos em movimento do espaço.

[8] O mapa ganha dobras de acordo com seu uso. Camargo Ao sul, abaixo da linha do equador (des)orienta e divide a carta pela dobra.

[9] Ver Internationale situationiste, 1958, ns. 1 e 2. Paris, Librairie Arthême Fayard, 2004, reedição facsimilar.

[10] A mussitação é um distúrbio caracterizado por uma fala repetitiva muito baixa, murmurada, monocórdica, pouco reconhecida e para si.

[11] No original: “’What is the use of a book’, thought Alice, ‘without pictures or conversations?’.” in Alice no país das maravilhas.

[12] Em 1867, o embaixador britânico foi humilhado pelo caudillo boliviano Mariano Melgarejo e devolvido a Londres. Em represália, a rainha Vitória ordenou a suas tropas que arrasassem La Paz. Ao saber que a cidade ficava nos Andes, longe de seus canhões, Vitória riscou o país do mapa com um X e declarou:“Bolivia does not exist.” JACOBS, Frank. “How Bolivia Lost Its Hat”. The New York Times. 3 de abril de 2012.

[13] A cartografia umbilical de Camargo é ambígua. Ela busca o centro (Omphalos mundi) em Tacuarembó como lance pró-charruas charruas e guaranis sobre os territórios perdidos na invasão colonial, mas ela foge da centralização de Mercator.

[14] Depois da Revolução Cubana, o realinhamento dos países da Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, com o terrorismo , gera uma antropofagia cartográfica: as vísceras esfarrapadas de Terminus, a América do Sul de Maiolino; o South American Triangle de Bruce Nauman, um aparato de tortura e Introdução a uma Nova Crítica de Cildo Meireles. O luto de Gravidade na Linha do Equador se refere a todo espaço de opressão.

[15] O mapa é sempre uma deformação. Dymaxion veio diminuir distorções nas dimensões relativas das regiões do mundo (como em Mercator e Gall-Peters)., não tem direção que aponte para cima. Fuller argumentava que no universo não há direções como acima e abaixo nem norte e sul: só dentro e fora. Ainda assim, Borges atesta que “todo argentino sabe que o Sul começa do outro lado do Rivadavia” (O Sul), enquanto, do outro lado do Prata, Torres-Garcia argumentava “nuestro norte es el Sur”. Gravidade na Linha do Equador fixa a base de todos os pedaços do mundo na mesma direção da linha imaginária que secciona a Terra, situando Marina Camargo entre Borges e Torres-Garcia.

[16] No mundo de excessos cartográficos, Gravidade na Linha do Equador não mapeia. Para além do não informativo, a cartografia de Camargo atinge a ausência do figural. Seu projeto perverso é o incartografável, um mapa wittgensteiniano sob a indizibilidade do Lugar.

[17] O impasse do contemporâneo, a saga de migrantes e refugiados sem rota, o corte que cinde os tempos culturais perdidos (pelos escravizados africanos vendidos nas Américas), são cartas de uma geografia inumana por violência, penúria e desastres da natureza. O planisfério desértico de luz e letra talvez seja a ameaça ao planeta antropocênico do século XXI.

[18] No quiasma dos sentidos, Gravidade na Linha do Equador anula a contrapartida da imagem auditiva saussureana. Emudece. Ademais, o mapa de Camargo não serve a nictofóbicos.

[19] HERKENHOFF, Paulo. “Mirosław Bałka, the iluminating darkness of How It Is”. In Helen Sainsbury (ed.). Mirosław Bałka, How It Is. Londres, Tate Gallery, 2009, p. 50–105.

[20] O mapa em luto, fraturado por Camargo, é a alegoria do poder dos estados nacionais e guerras tribais devastando sociedades, atuantes por pulsão de morte.

[21] Para Camargo, o mapa não hipostasia o espaço, cuja substância é o vazio. No oposto da economia delirante das hipérboles cartográficas de Borges, está a economia de vácuos e lapsos de Beckett. Artaud alude a certo vazio ausente, entre Borges e Beckett. Gravidade na Linha do Equador propõe, então, ser o vazio ausente. Ver DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo, Perspectiva, 1995, p.150.

[22] Vácuo provém do latim moderno vacuus, não ocupado; void, vazio em inglês, vem de um dialeto francês vuide e do latim vacare; lacuna é espaço não preenchido, do latim lacus, lago.

[23] BRAYER, Marie-Ange. “La carte lacunaire et espaces de l’art”. In Cartographiques. Paris, Réunion des musées nationaux, 1996, p. 186.

[24] Max Bense. Pequena Estética. São Paulo, Editora Perspectiva, 1971, p. 220.

[25] Em Cruzeiro do Sul, Cildo Meireles avalia o sentido do Tratado de Tordesilhas.

[26] “O vazio do mapa da região do Sertão brasileiro nos séculos XVI-XVII ou a negação da memória histórica na Alemanha são duas maneiras distintas de abordar os espaços e o esquecimento.” CAMARGO, Marina. “Topofilia ou contaminações entre espaço e pensamento”.

[27] Tania Rivera discute como Lacan, no Seminário 7, toma o exemplo heideggeriano do vaso, construído a partir de seu vazio, para pensar o sujeito e a arte. RIVERA, Tania. “Ensaio sobre a sublimação”. In Discurso, 2007, n. 36, p. 321-324.

[28] Lygia Clark: “o homem não está só. (…) Vem do vazio para a forma (vida) e sai desta para o vazio-pleno que seria uma morte relativa”, Carta a Mondrian.

[29] Prefiro pensar Gravidade na Linha do Equador sob a noção de vácuo informacional e não de vazio, sujas conotações são poéticas, existencialistas, psicanalíticas e metafísicas que envolvem o termo vazio na história ocidental moderna.

[30] BACHELARD, Gaston. La Terre et les rêveries de la volonté. Paris, Librairie José Corti, 1947, p. 361, “o mito de Atlas é um mito da montanha. Daí Alpenprojekt.


Texto originalmente publicado no catálogo da exposição “RSXXI – Rio Grande do Sul experimental”, realizada com a curadoria de Paulo Herkenhoff no Santander Cultural de Porto Alegre, em junho-julho de 2018. 

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