Em Planisfério, a obra de Marina Camargo orbita entre dois de seus principais vetores poéticos: a tentativa de abarcar algo da amplidão e o foco mais detido sobre o particular e o indicial. Nos interstícios entre a paisagem e o confinamento, o intuitivo e o convencionado, o diluído e o determinado, a artista radicada em Porto Alegre faz do desenho a mola mestra dos seus trabalhos. Camargo, no entanto, tem no traço, na linha, no esboço e nos outros elementos constitutivos de tal linguagem apoios visuais. O essencial é o pensamento do desenho, algo anterior aos resultados exibidos em salas expositivas.

“[…] Faço referência a uma noção mais ampla, do desenho ligado à formação de um pensamento visual. […] Acredito que o desenho tem o potencial de não apenas se expandir como campo, mas de ser entendido como um campo maleável, permeável, poroso. […] O desenho está para mim muito próximo do campo das idéias, de formação das idéias e da percepção do mundo […]”1, comenta ela.

Inventário de Águas – Rio (estudo para Atlas do Brasil), 2012

Na sala Zip’Up, então, a proposição da artista pode ser vista como um espaço instalativo, calcado na ideia de um desenho que foge do plano, formado pelas intervenções Projeção I e Projeção II (ambas de 2012) e por Inventário de Águas – Lagos/Lagoas e Inventário de Águas – Rios (ambos de 2012 também). O primeiro conjunto utiliza os contornos de um mapa-múndi vistos sobre duas paredes da sala. Como se houvesse um desdobramento em projeções em vinil adesivo sobre o chão, tais planisférios são marcados pelas latitudes e longitudes, ausentes da representação na parede. Já o segundo conjunto se vale do sistema de gabaritos arquitetônicos – recortes em acrílico colorido, em geral azul, e translúcido – para registrar as principais bacias hidrográficas e lagos/lagoas do território brasileiro. Por meio de quatro folhas de acrílico sobrepostas, as composições se valem das áreas vazadas, do jogo de cores e transparências e da materialidade frágil para criar uma cartografia que, concretamente, deixa de reproduzir com precisão o que originalmente motivou sua própria criação. Em Projeção I e Projeção II, o mesmo procedimento é adotado: as representações do globo terrestre ora funcionam como janelas (nas paredes) ora como projeções ou lugares virtuais de bordas e limites despidos da função primeira (no chão).

Essa reapresentação de sistemas feita por Camargo acaba por embaralhar noções mais incisivas, regulares e certeiras do que nos cerca. Se os mapas – hoje mais onipresentes e cotidianos do que nunca, via dispositivos móveis – são construções humanas criadas também para facilitar a compreensão do entorno e cujos moldes estruturais são atualmente colocados em xeque – por conta de postulados científicos hoje vistos como duvidosos e ideários políticos em franca corrosão, por exemplo –, o que a artista quer discutir? “Onde a representação do mundo falha e não dá conta da realidade, mas indica algo desta, mesmo que seja aos pedaços, os desenhos partem de referências precisas, porém não cumprem função alguma”, afirma.

Projeção I e II, 2012

Portanto, incertezas, incompletudes e faltas reveladas nas brechas de um discurso hegemônico – “Pode haver cartografias que não estejam ao serviço da dominação?”2, pergunta o curador colombiano José Roca em texto de Ensaios de Geopoética, norte da 8ª Bienal do Mercosul, ocorrida em 2011 e com a participação de Camargo – são percebidas por meio da construção de um forte processo poético, mesmo que os deslocamentos e decantações resultantes possam parecer, a priori, muito exatos.A obra de Camargo, assim, tem mais a ver com o caráter erosivo e em contínua transmutação dos conceitos veiculados e defendidos por, relembrando um nome, Smithson, neste que vem a ser um dos percursos centrais da arte contemporânea. Tanto Planisfério como trabalhos anteriores da artista se amparam em um projeto precário e finito, trazendo à tona uma existência instável. A dissolução de linhas e volumes de Geografias (2011), o aspecto aberto de Open Horizons Project (2010), as referências que flutuam e se esvaem de Atlas do Céu Azul (2010) e a luz débil de Some Air in Between (2011) se ligam imbricadamente ao exibido agora e, pouco a pouco, agregam robustez a uma das produções recentes mais interessantes da arte contemporânea brasileira.

  1. VÁRIOS. Lugares/Representações – Andrei Thomaz, Daniel Escobar, Marina Camargo. São Paulo, Funarte São Paulo, 2011, p. 40
  2. ROCA, José (org.). Ensaios de Geopoética – 8ª Bienal do Mercosul. Porto Alegre, Fundação Bienal do Mercosul, 2011, p. 44

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TEXTO ESCRITO EM OCASIÃO DA EXPOSIÇÃO INDIVIDUAL “PLANISFÉRIO” NO PROJETO ZIP’UP DA GALERIA ZIPPER (SÃO PAULO, 2012)

Mario Gioia é graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo). É curador e foi repórter e redator de artes e arquitetura no caderno Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo, de 2005 a 2009, e atualmente colabora para diversos veículos, como a revista Bravo e o portal UOL, além da revista espanhola Dardo e da italiana Interni. É coautor de Roberto Mícoli (Bei Editora) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes.